16.8.04

Crónicas da Figueira VII

Apetece-me praguejar com toda a força e convicção. Não há direito de, no meio de um mês agradável e prazenteiro como este Agosto, surgir uma impertinente gripe - de força poderosa - que me estrague a existência durante um fim-de-semana. Não há pachorra perante tamanha falta de respeito. As doenças já não são o que eram, nos tempos em que surgiam no Inverno, em dias cinzentos e desagradáveis em que até nem nos importávamos de ficar em casa. Agora no Verão, com o sol a brilhar intenso pela janela, com as alegres vozes a penentrearem os nossos ouvidos quando regressam de um magnífico dia de praia! Um nojo, definitivamente um nojo.

11.8.04

Crónicas da Figueira VI

Longe do quotidiano não conseguimos fugir das más notícias, elas sempre chegam. Um conhecido - hesito sempre em usar a palavra amigo - de alguma proximidade está em coma. Esse estado que sempre nos leva a temer o pior. Forcado, foi em praça que assim ficou, cabeça no estribo após investida do toiro. Sorte malvada. Pode dizer-se que brincava com a morte ao entrar na arena para agarrar um toiro, mas são essas as regras da toirada. O toiro ganhou.
Revolta sempre, o simples facto de pensar numa vida curta em risco de terminar - abruptamente. Tornam-se vãs as palavras perante o espanto, perante a tristeza.

Crónicas da Figueira V

Ano após ano na mesma esquina. Mais que uma escultura de ferro ou bronze esta senhora faz parte do picadeiro, ela e a sua banca ambulante, de madeira, à antiga. Sempre a visitei. Em criança para um pirolito, daqueles de caramelo sem corantes nem conservantes, com a cor e o aspecto do caramelo - tal como ele é -, enrolado em papel pardo. Mais tarde fui virando progressivamente para as pevides, os tremoços ou os amendoins. Ao fim da tarde com imperiais, a meio da noite também com imperiais. Um dia surgiram os exóticos pistachios, hoje banais, no seu verde absinto que se estranha antes de entranhar. Foi novidade, foi notícia. Também o foram os amendoins descascados - salgados ou picantes -, as pastilhas Gorila ou Pirata, os recentes Chupa-Chups.
E ela continua, sempre a cumprimentar educadamente, sejam três da tarde ou quatro da manhã em fins-de-semana. Há mais vendedores das mesmas tentações junto a ela, mas aquela esquina é a minha, como em todos os hábitos duradouros que não se tornam vício. Nunca soube o seu nome, prefiro mesmo não saber, mas continuarei no entanto a passar e a comprar, a vê-la encher a medida e completar o saco com mais alguns a vulso. A reconhecer-me quando o mês começa, sem saber o meu nome, ano após ano.

10.8.04

Crónicas da Figueira IV

Os dias vão passando e já estou em casa. A chuva apareceu e obrigou a passeios entre livros na sempre eterna Casa Havanesa, um snooker no velho Europa e um deambular por cafés e petiscos. Não é assim tão mau quando chove, obriga-nos a largar esta rotina da praia e gozar a cidade.
O mar zangou-se e fez lembrar velhos tempos. Na praia apenas destemidos - e conhecidos - lobos-do-mar e alguns adolescentes inconscientes ousaram um mergulho, na espuma e entre a areia, como convém. A Figueira é assim, entre velhos conhecidos e a modorra da rotina, por isso gosto dela.

6.8.04

Crónicas da Figueira III

As deslocações épicas por entre camionetas atulhadas de tudo, como se uma mudança anual nos transportara para outra dimensão, para outro país ou continente, para uma outra existência. A etapa de Agosto partia o ano, quebrava uma apatia provinciana que se arrastava por meses, sempre com o desejo e a meta do verão. Hoje tudo é diferente, em vidas por vezes frenéticas e anónimas em que é difícil encontrar locais em que o tempo custa a passar e nos quais nos sentimos irremedialmente em casa. A romagem anual devolve-nos a outras vivências que abundantemente esquecemos, a uma inocência a que regressamos com saudade, com este sentimento de não poder, nem querer, recuar, mas sim de recordar e, porque não, reviver.

Crónicas da Figueira II

Tudo mudou com o correr dos anos, mas a imutabilidade das pessoas, em que apenas as rugas nos acordam para a realidade, faz destes sítios os nossos sítios.
Faz-me falta o cheiro das bolachas dos cones dos gelados do Tamariz, ali na esplanada junto à praia, onde passava de mão dada com o meu pai, quando ainda concebia e praticava a praia pela manhã. Relembro a máquina de marionetas na Luna, onde passei longos minutos a dançar ao ritmo do Pinóquio - olhando temeroso para a maldosa bruxa que agitava a vassoura -, e que perdurou enquanto o fazia com primos ou sobrinhos, quando a bruxa mais não era que um emaralhado de madeira e tecido e a sua expressão apenas risível. Até ao ano em que desapareceu, como desaparecem tantas coisas da vida, sem aviso nem notícia deixando o lugar vazio e apenas perdurando nas memórias de caturras que teimam em viver de braço dado com o passado.
A nostalgia toma conta destas crónicas ao ritmo que as memórias assaltam o pensamento, olhando o mar calmo e morno, pensando nos tempos de mares temíveis e ondas que transportavam consigo a cólera sempre bela do mar.

3.8.04

Crónicas da Figueira I

Este blogue - ou seja, eu - mudou-se de armas e bagagens para a Figueira da Foz. Romagem anual com tantos anos quanto a minha vida, ainda possível graças aos efeitos benéficos de uma profissão liberal que me permite tranferir-me na companhia do indispensável portátil. Férias ou talvez não, ou pelo menos a consciência tranquila de não abusar das benesses advindas da ausência de um patrão carrancudo e implacável.
O blogue seguirá ao ritmo das nortadas ou dos dias maravilhosos como o de hoje - não é ironia, o país está debaixo de água e eu só agora saí da praia - conforme este microclima permita. A assiduidade será essa, imprevisível, lutando entre crónicas de Verão e a preguiça de fins de tarde luminosos e longos.