26.3.04

Até já

A assiduidade esta semana não tem sido muita, o trabalho submergiu-me com uma voracidade avassaladora. Por esta vez os motivos são bons. Daqui a pouco parto em visita ao antigo Império, em puras e verdadeiras férias. Por duas inteiras semanas ausento-me, não sem uma ponta de saudade, desta já indispensável blogosfera.
Bons dias e boas noites para todos e até depois da Páscoa.

22.3.04

Eva Cassidy

Todos temos os nossos cultos, aquelas coisas que inexplicavelmente nos arrebatam mais que quaisquer outras. Ouvi Eva Cassidy pela primeira vez por puro acaso. Vivia então em Espanha e, como era hábito se estivesse em casa, ouvia o programa da noite da Rádio 3. Por aqui passava alguma World Music, bom Jazz e improváveis registos. Subitamente uma voz angelical cantava "Fields of Gold" num timbre etéreo e com uma interpretação extraordinária. Esperei calmamente na esperança de ouvir o seu nome. Nada feito, seguiu-se uma música, e outra. Dias depois ouço de novo a mesma música e espero uma vez mais. Consegui saber mais do que o nome, soube, numa breve explicação do locutor, que era uma cantora americana que havia morrido há pouco tempo, ainda nova. Apenas editou um disco em vida e foi descoberta, por alguns eleitos, depois de morta, com a edição de alguns registos de originais. No dia seguinte corri à loja onde se encontravam os melhores discos tentando comprar o que houvesse. Consegui "Songbird" e "Time After Time", ambos colectâneas póstumas.
Descobri um culto, uma obsessão musical. Com estes discos apaixonei-me irremediavelmente por esta senhora loura e de ar cândido, infelizmente já desaparecida. As suas interpretações têm aquele toque indefinível que as faz únicas, que distingue um bom técnico de um grande artista. Basta ouvir a subtileza de "Over the Rainbow" ou "Anniversary Song" para não querer outra coisa.
A sua voz cantou do Jazz aos Blues, passando por "covers" de êxitos Pop adaptadas ao seu estilo sereno e melodioso. Músicas como "Autumn Leaves", "What a Wonderful World", "Tennessee Waltz", "Danny Boy" ou "Fever", dão-nos a conhecer uma voz única e inconfundível.
Recentemente, e motivo porque me lembrei de fazer esta posta, saiu mais um disco de inéditos: "American Tune". Talvez este seja o mais fraco de todos os seus discos, essencialmente pela má qualidade de algumas gravações, mas que ainda assim vale a pena pelas recriações de "True Colors" ou "Yesterday".
Ouçam, por certo não se vão arrepender. E não digam que vão daqui.

Chá

Num dia qualquer, algures neste mundo.
- Por favor, é um Earl Grey para mim e um Darjeeling para o Sr. Laden.- disse Mário, virando-se depois para o seu barbudo acompanhante - Pois é Bin, acho que esta conversa vai ser muito produtiva. Temos mesmo de conseguir negociar com os americanos, não pode continuar assim. Sabe, eu não gosto deles, mas também andar a matá-los parece um pouco excessivo.
- Mário, eu sei que você é um amigo da nossa causa, que tem defendido todas as nossas intervenções e que ainda odeia mais o Bush do que eu, mas nós trabalhamos assim.
- Mas concretamente o que é que vocês pretendem?
- Mário, Mário, isso nem eu sei. Queremos é matar todos os aliados do imperialismo americano, todos os opressores do povo árabe.
- Espere um pouco Bin, vem aí a minha amiga Ana.
- Olá Mário, finalmente conseguiu encontrar-se com o Sr. Laden.
- Ana, deixe-me apresentar-lhe o meu amigo Laden, estamos a negociar.
- Encantado minha senhora, tenho ouvido falar muito de si.
- Oh! Sr. Laden - disse Ana corando um pouco - o prazer é todo meu, não é todos os dias que encontramos alguém que passa à prática o nosso ódio pelos americanos imperialistas.
- Mas sente-se, tome um chá connosco. Penso que me vai ser muito útil, agora que vai para o parlamento europeu.
- É um chá de Tília para a Sra. Gomes. Por favor.

16.3.04

A Primavera ameaça a sua chegada. Lisboa mostra as suas formas numa luz brilhante, única e inimitável. Dias assim fazem acreditar no mito de que se trabalha mais no Norte do que no Sul. A luz, o calor, o brilho da rua convidam a tudo menos à presença fechada entre quatro paredes de um escritório. A preguiça nasceu a Sul, isso é definitivo.

Capelinhos, Faial, Açores, 2003

15.3.04

Cavaco I

O Sr. Aníbal é nome ligado a muita coisa que abomino. A sua simples menção tem consequências devastadoras na minha pele, manifestadas por sintomas de urticária aguda ou erzipela. A minha geração cresceu com Cavaco e o cavaquismo, sendo por ele marcada a bem ou mal. Para alguns ele foi o salvador da pátria, o Messias da direita (sendo que nunca percebi que ele era de direita), o Homem que pôs o país em ordem. Na verdade no seu primeiro mandato - em boa hora minoritário - o Sr. realmente deu ordem a um país desgovernado desde a revolução. Tal como Salazar o fez após a desastrosa primeira República que deixou o país de pantanas. Mas isso não faz dele, tal como não faz de Salazar, um governante exemplar a idolatrar. Devemos reconhecer os méritos a quem os deve, incluindo a ditadores, mas daí a avaliar a sua prestação política apenas por iso...
Cavaco foi muito mais do que isso, aliás o muito mais é o que conta no seu caso. Durante dez anos de poder, exercidos de forma dura ao nível de algumas ditaduras democráticas, instalou-se uma clientela sem nível, surgia do vácuo, que passeou o seu poder por este país com uma sobranceria e arrogância a toda a prova. Nunca entendi as desculpabilizações de que o Sr. estava mal rodeado, que a culpa não era dele. Como se na altura Cavaco não tivesse todo o poder possível no partido para impor que quer que lhe desse na real gana. Parece que o Sr. era um ente superior, vagueando num limbo de virtudes, sem possibilidade de banir os incompetentes sedentos de poder que o rodeavam.
Cavaco marcou uma geração, especialmente na forma como projectou um país. Mais do que pequenas questiúnculas de propinas ou regalias de médicos. O que Cavaco criou foi uma mentalidade nova em Portugal, um quase Homem Novo à imagem do seu ideal. O que Cavaco criou, e isso eu não esqueço, foi uma cultura popular em que todos eram ricos e com poder de compra, que o endividamento era algo sem consequências e de que bens, até então quase de luxo - electrodomésticos de toda a espécie, carros novos e, particularmente, casa próprias novas - eram bens ao alcance de todos. Antes fossem.
O novo-riquismo que a conjuntura económica propiciou alastrou-se ás classes mais baixas e o país endividou-se. Tudo correria bem, não fosse uma questão óbvia, a economia tem ciclos e depois da bonança vem a tempestade. Hoje Portugal é um país endividado, com famílias a viver no limiar da pobreza à custa das prestações mensais. Todos temos legitimamente a vontade de viver bem, de ser ricos, mas temos de ter noção do que podemos comprar, do que o nosso dinheiro pode suportar. O que Cavaco criou foi um optimismo exacerbado na população que a fez crer rica, quando no fundo isso não passou de uma fase momentânea. O que Cavaco criou foi uma mentalidade generalizada que o dinheiro e o poder são algo fácil de conseguir, e que os bens acessórios são, afinal, algo atingível por todos. Ainda hoje nos ressentimos disto. Os governos PS foram maus, isso poucos questionarão, mas era impossível manter a economia como ela vinha detrás, pelo motivo simples de que em economia não dependemos só da nossa vontade e do nosso querer, dependemos de uma conjuntura internacional que não dominamos, e à qual nos temos de sujeitar.
Os governos cavaquistas foram como pais que não sabem educar os seus filhos, achando-se no entanto educadores natos. Cavaco inundou o povo português de presentes, mas quem veio depois não teve, obviamente, dinheiro para continuar a festa. Acredito que para muitos os anos laranjas foram de prosperidade e de boa vida, mas tenho a certeza que para uma imensa maioria os anos seguintes foram de grandes apertos.
Mais do que criticar medidas avulsas, o que detesto em Cavaco é esta irresponsabilidade que foi enganar o povo português durante anos, falando de miragens e de oásis. Hoje em Portugal até a sociedade pode ter em geral um nível de vida aceitável, mas não consegue, de forma alguma, ter dinheiro para sustentar o nível a que se julga de direito. Enganar um povo é grave e o grande responsável tem um nome, Aníbal Cavaco Silva.
O regresso de Cavaco ás bocas do país tem apenas uma vantagem, para quem escreve
ou pensa, é que voltamos a ter uma "bête noire" para desancar, sem dó nem piedade. "O Independente", que foi o jornal da minha geração, viveu muito em função desta criatura política, alimentando-se do seu regime para fazer o melhor jornal português que eu tenho memória. O meu único e solitário aplauso a um regresso de Cavaco é o de poder ter alguém de quem dizer mal, convictamente mal, por muito e muito tempo. Acho mesmo assim que o meu prazer individual não se deve sobrepor aos interesses do meu país, por isso, na dúvida, Professor fique em casa com a Sra. Maria, deixe-se estar a comer bolo-rei no Natal com a família e não perturbe, uma vez mais, o seu país. Obrigado.

Espanha

Os espanhóis surpreenderam no dia de ontem, optando pela mudança no governo e castigando o PP de forma implacável. Tudo foi estranho, mas a provar-se a ocultação de factos por parte do governo não podemos negar que o castigo terá sido justo. No entanto a manifestação de Sábado provou que os escrúpulos políticos não foram melhores do outro lado, ao aproveitar o dia de reflexão para a mais clara campanha eleitoral.
Tudo me fez confusão porque o atentado foi de enorme gravidade para o país e para a Europa e durante dois dias isso foi esquecido em nome de interesses eleitorais. Não compreendo os festejos do PSOE (como não compreenderia se fossem do PP) e acho da maior falta de gosto que se comemore em dias que deveriam ser de luto.
O PSOE ganhou porque o PP apoiou os Estados Unidos na guerra do Iraque. Será que com o PSOE a Espanha não teria apoiado a guerra? Lembremo-nos dos tempos de Felipe Gonzalez.

11.3.04

Luto

Luto por Espanha.
Luto pelo mundo civilizado.

O Terrorismo Relativo

O mundo está de luto, pelo menos o mundo civilizado e os seres humanos dignos desse nome. Não são só os espanhóis, que sofrem obviamente mais, que estão chocados e revoltados. A civilização que tentamos construir não é esta.
Os paladinos de certas ideias irão relativizar este atentado com as tendências imperialistas do Reino de Espanha, acharão justa mais esta forma de protesto de um povo oprimido contra o país dominador? Desta vez foi aqui ao lado, com o Euro poderá ser aqui, dessa vez de quem será a culpa, quem será o infame que obrigará a mais um acto de revolta contra a opressão. Com o 11 de Setembro quase conseguiram justificar o deliberado assassinato terrorista de milhares de pessoas, agora foram 170, serão apenas estatísticas como dizia Estaline. Confirme-se a responsabilidade da ETA e talvez ainda hoje o reverendo do bloco e a pandilha do costume venham justificar a luta do povo Basco, talvez mandem o Professor Rosas contar a história manipulada como só ele é capaz. Confirme-se que o atentado partiu da Al Qaeda e logo virão dizer que é consequência directa da guerra do Iraque e do apoio dado por Espanha aos Estados Unidos. Talvez façam manifestações pelos direitos humanos das pessoas que venham a ser detidas, agora respeitar os mortos e perceber que os fins não justificam os meios e que em democracia isto vale tanto como um assassinato a sangue frio, isso não creio.
O relativismo moral em casos destes é igualmente criminoso, não falamos aqui de uma bomba num alvo estratégico com vítimas colaterais, falamos de matar deliberadamente seres humanos, de usar a morte em nome não se sabe bem de quê. Aqui a única relatividade vem do valor da vida humana, para uns ela vale tudo, para outros vale nada.

10.3.04

Estalinismo

Portugal será um país democrático, mas há instituições muito respeitadas que não o são. A TSF lançou um CD com os melhores momentos da sua história. A ideia parece interessante e podemos ouvir os relatos, então em directo, de alguns dos mais importantes acontecimentos da nossa história recente. O que é estranho é o fortíssimo ataque de amnésia que os levou a esquecerem-se de um dos seus mais proeminentes jornalistas e ex-director: Carlos Andrade. Esta falha vem acompanhada pela ausência do momento em que a TSF mais visibilidade teve, aquele que, pelo menos para mim, é o marco da sua existência, a causa de Timor. Carlos Andrade uniu o país em torno de uma causa, tendo inclusivamente recebido distinções por isso. Como é possível a ausência de qualquer referência a isto no CD em causa.
Reescrever a história sempre foi uma tentação estalinista, que certa gente cultiva e onde continua a cair. Não percebo é como um facto deste passa despercebido aos nossos sempre tão democráticos jornalistas. Parece que os que se tomam por virgens puras da democracia são afinal prostitutas da liberdade.

Portugal é definitivamente um país curioso.

O Estado queixa-se que os portugueses não pagam os impostos e que as dívidas à Segurança Social são vastas e incobráveis. Facto. No meu caso numa semana consegui que me acontecesse exactamente o oposto. Enviei a declaração de IVA, por correio porque as declarações electrónicas estavam bloqueadas, e não consegui pagar por Multibanco. Motivos insondáveis levavam a que os pagamentos não estivessem disponíveis. Até aqui tudo mais ou menos normal, um problema de resolução a curto prazo, espero, e que voltará a funcionar como estou habituado.
Mais grave se passou com a Segurança Social, aqui tudo foi, e está a ser, muito pior. Há algum tempo deixei que os pagamentos da minha contribuição mensal fossem efectuados por transferência bancária. Tudo era para mim, e para o Estado, mais simples, evitando esquecimentos e atrasos. Para tal tinha uma conta específica onde coloquei o dinheiro necessário para alguns meses. Um dia resolvi ver quanto dinheiro me restava e constatei admirado que ainda tinha muito, mais do que era suposto. Deixei andar até que, uns meses depois, recebi uma carta da Segurança Social a dizer que tinham deixado de fazer cobrança por transferência bancária. Sugeriam o pagamento por Multibanco, para o qual enviaram instruções. Como precisei do dinheiro que tinha de parte na altura deixei andar sem pagar. Fui deixando de pagar, por atrasos em cobranças, até que quis voluntariamente pagar. Aí tudo se complicou!
Comecei por achar que, tendo alguns meses em atraso, teria de pagar directamente na tesouraria. Cheguei lá e informaram-me que não, que o melhor era ir ao Multibanco que assim não pagava juros de mora. Achei estranho, mas, no dia seguinte, lá fui até ao Multibanco. Depois de algumas tentativas disse que o número de beneficiário, que tinha no cartão na minha mão, era errado. Telefonei então e disseram-me que se calhar eu ainda não estava nos arquivos informáticos e teria de fazer o pagamento manualmente (isto apesar da carta que me enviaram para pagar no Multibanco).
Há dois dias entrei na Loja do Cidadão dos Restauradores pelas 11 horas e tirei uma senha, preparando-me para alguma demora. Olhei o meu número, olhei o número onde ia, e "apenas" faltavam 270 pessoas. Como tinha coisas para fazer, desisti e voltei ontem. Ao chegar consegui o número 411, sendo que ainda ia no 77. Passeei pela Baixa, almocei, subi ao Chiado, voltei, subi a Avenida da Liberdade, voltei, li o jornal e um livro e esperei calmamente a partir do 350 implorando por desistências. Afinal não esperei muito tempo, apenas 7 horas a que me sujeitei pela necessidade real de regularizar a minha situação. A senhora que me atendeu era de grande simpatia, o que me surpreendeu, e ao ouvir o meu caso começou por dizer que ali não aceitavam pagamentos. Ia desmaiando. Ao ver o meu ar assassino de súbito pânico a senhora acalmou-me e tentou resolver a situação. O melhor que conseguiu for dizer-me para ir à Tesouraria do Areeiro onde irei amanhã.
Tudo isto é extraordinário, eu quero pagar, quero realmente e de boa vontade pagar. Não estou a fugir mais dos meus atrasos, não me escondo esperando os 5 anos para ser amnistiado, eu quero pagar. Eu quero mas o Estado não facilita, e até não era preciso facilitar muito, bastava não criar um muro quase intransponível a quem quer pagar. Eu sei que pareço louco neste meu desejo, mas não tivesse mesmo de ter a situação legalmente resolvida e garanto que a Segurança Social não veria de mim nem mais um cêntimo. É que bolas, eu sabia que o Estado era mau pagador, agora que não nos deixava pagar!

8.3.04

Europa

Uma sondagem apareceu a desestabilizar os comentadores políticos e os jornalistas. Segundo a mesma, os portugueses preparam-se para se abster em 70% ás próximas eleições europeias. Não percebo o espanto.
Entrámos na Europa já faz um tempo e em teoria o povo deveria estar habituado a essa convivência. Nada mais errado, em vários anos de Europa, essa entidade abstracta e indefinível, nunca os políticos portugueses, do alto do seu pedestal, se incomodaram a explicar ás massas no que consistia de facto a Europa. Teria tido muita graça acompanhar esta sondagem com perguntas como: O que é a Europa? Qual o lugar de Portugal na Europa? Para que servem os deputados europeus que vamos eleger? Como é composta a Europa no que toca aos centros de decisão? Quais são os nossos direitos e deveres em relação à Europa? Aposto, singelo contra dobrado, que as respostas correctas não ultrapassariam os 5%. Mais interessante ainda seria repetir estas perguntas aos nossos deputados e políticos, com um ligeiro aumentar da percentagem ela não seria, ainda assim, brilhante.
Como é que esperam que o povo vote e se desloque a dar o seu contributo para algo que nem vagamente compreende. A Europa para o comum dos mortais portugueses não é mais do que uma abstracção que nos manda uma massas e que nos obriga a cumprir algumas normas (a maioria das quais idiotas). Se falarmos de Europa o que nos ocorre são os fundos estruturais, os "girassídios", os Range Rover comprados para modernizar a agricultura portuguesa, as alterações impostas aos nomes genuínos de tabacos (o triste caso do Português, agora não Suave) ou as tentativas de proibir os jaquinzinhos (como sobreviver a esta falta!). Ironias à parte, é claro que também nos trouxe coisas boas, só tenho mais dificuldade em me lembrar delas.
A nossa presença na Europa é inquestionável, agora a nossa posição relativa nunca foi discutida de forma perceptível, de forma que permitisse uma consulta popular efectiva. Mas afinal para que é preciso um referendo sobre a Europa, a taxa de abstenção nas eleições europeias não é mais do que isso, uma clara demonstração do desinteresse popular perante essa utopia federalista que é a Europa.

Anos II (3 dias depois)

Pensei que chegar aqui fosse mais difícil, há tempos que consumo o espírito desejando que esta data tardasse a chegar. Imaginava o calendário a saltar o dia, sem traços que marcassem uma chegada indesejada. Não por ingratidão, mas porque há números que marcam, que nos fazem pensar, que nos fazem crer que tudo mudou. A outra escala foi o que se passou aos 18. Mas esta vez avizinhava-se mais dura, e foi, sendo que apesar de tudo foi muito melhor do que o esperado.
Sabemos que números nada dizem, que a idade, a verdadeira idade, permanece encerrada no espírito. Ainda assim custa, custa mudar de dezena, custa passar a um clube do qual não nos sentimos membros. A sensação é a de entrar numa festa sem ter sido convidado, sentimo-nos desconfortáveis, fora do "habitat".
Irrita-me saber que alguns disparates que faço, e espero continuar a fazer, sejam agora apontados como de outras idades, irrita-me que as roupas que visto sejam censuradas por questões etárias. No fundo é isto que custa porque a minha postura será exactamente a mesma.
Um problema supera os anteriores, o tempo jovem que sentimos não ter vivido, as coisas que queríamos ter feito, a sensação do tempo nos fugir das mãos como água. A vontade de voltar atrás, não para mudar as coisas, mas sim para as viver ainda mais, e ir mais além.
A idade não nos faz sentir velhos, mas há coisas que o fazem e muito. Já não falo da capacidade para aguentar um jogo de futebol ou outro exercício físico. Falo da constatação de haver depois de nós uma outra geração, ou mesmo outras. Gente que não vibrou com o "Verano Azul" assobiando em grupo a sua canção; que não esperava ansiosa pelos desenhos animados que o Vasco Granja nos trazia, chorando quando eles eram Checos ou Polacos; que o primeiro computador que teve não foi, seguramente, o Spectrum 48K, do qual nem sabe a existência; que liga Sá Carneiro só e apenas a Camarate; que não sabe que a Lois foi objecto de desejo há alguns anos e que os All Stars não são uma criação moderna.
Esta sensação de A Geração já não ser a nossa leva-nos a pensar que o mundo nos está a passar ao lado, e dou por mim a ter vontade de dizer o que sempre odiei ouvir: "no meu tempo é que era". Espero não o fazer, acho que não o vou fazer, afinal a resignação é uma virtude e eu vou tentando, com dificuldade, ser minimamente virtuoso.

Anos (3 dias depois)

No dia em que o rei fez anos houve arraial e foguetes no ar.
No dia dos meus anos houve calma e paz. Desapareci.

4.3.04

Surpresas de Lisboa

Ou como um simples jantar de semana se transforma numa noite argentina e divertidíssima.

Ontem, estava eu num pacato jantar de semana no "El Ultimo Tango", quando o inesperado aconteceu. A conversa corria animada e fomos prolongando um pouco o jantar ao ritmo de um ou dois Whiskeys. Estávamos nisto, com restaurante já vazio - à parte dos empregados, dos donos, e um ou dois amigos -, quando entra um rapaz de "bandoneón" ás costas. Na mesa ao lado conversavam animadamente com ele, enquanto nós pedíamos mais um Whiskey. A dona chegou à mesa e disse que estavam de saída para um concerto de tangos no Frágil, e que o rapaz era muito bom. Sugeriu que também fossemos e nós, bem dispostos, acedemos.
A partir daqui foi uma noite inesperada que teve como único problema o acordar na manhã de hoje. O rapaz - Walter Hidalgo - tocava mesmo bem e a onda familiar criou o que o tango - assim como o fado - necessita, ambiente. O sentimento sul-americano contagiou os poucos, mas animados, espectadores que embalaram para horas de diversão ao som dos tangos argentinos.
Lisboa é realmente uma cidade cheia de surpresas, tantas que ontem se transvestiu de Buenos Aires durante umas fugazes horas. Sorte a minha, sorte a dos outros que assim se puderam divertir numa supostamente pacata noite de semana. As melhores noites são sempre estas, as que não planeamos e das quais pouco esperamos.

Erros

Errar todos erramos, graças a Deus. O mundo sem erros seria uma miserável sucessão de comportamentos previsíveis. Aprender ou não com eles, isso depende da liberdade de cada um.

3.3.04

Debate de hoje

No Parlamento mais uma vez se discutiu o aborto. A esquerda apresentando projectos para descriminalizar o aborto, outros para realizar um novo referendo. A esquerda dizendo pérolas como que "as mulheres são livres de ter a sua sexualidade", considerando que a liberdade vai até utilizar o aborto como método contraceptivo. A direita recorrendo ao referendo já efectuado para não alterar a lei. A esquerda invocando que as "mulheres são donas do seu ventre", curiosamente a mesma esquerda que se junta em patéticas manifestações em Barrancos ou noutros locais, verberando contra quem mata animais. (Aqui bate um ponto importante, uma sociedade onde se defendem mais os animais do que o próprio Homem é uma sociedade perigosa.) A direita tem agora um desafio pela frente, tomar medidas concretas para diminuir os abortos. A ver vamos.
No final de um debate aparentemente civilizado, um fim em grande. O público, incentivado por uma deputada do Bloco de Esquerda (Ana Drago no seu melhor), gritava a "luta continua", relembrando tempos arcaicos do PREC, só faltando os gritos de abaixo o fascismo. Com deputadas assim, que nem respeitam a instituição onde representam o povo, o país pode chorar pelos seus políticos. A falta de noção de Ana Drago é tanta que, se algum dia a insultarem das bancadas do hemiciclo, terá que aceitar placidamente pois já deu esse exemplo. A ideia é tentadora, talvez um dia valha a pena a deslocação.

Aborto

Hoje discute-se na Assembleia da República a descriminalização do Aborto. Por motivos quanto a mim oportunistas, um assunto referendado há seis anos, e na altura refutado pela maioria dos votantes, volta à actualidade. Na altura não dei o meu voto, por comodidade e por achar que o "Sim" ganharia. Mas essencialmente porque a campanha tomou contornos abjectos de parte a parte, com a "inteligentzia" a bramir pelos direitos da mulher (com meninas bonitas dizerem-se donas do seu ventre) e os adeptos do "Não" com gritos histéricos pela vida. O assunto é sério demais para ser discutido assim, a campanha levou-me a não querer dar razões a ninguém. Não votei.
Sobre o assunto deixo aqui algumas notas dispersas e desorganizadas:

- Tivemos um referendo há muito pouco tempo. Parece-me elementar que se respeite a vontade da população. Democracia é isto, é aceitar a vontade do "povo" expressa nas urnas, seja a nossa ou não. A esquerda parece esquecer-se disso com demasiada frequência, surgindo com a habitual arrogância moral de quem se julga detentor de verdades absolutas.

- Sendo proibido, o aborto é feito em Portugal. Ninguém questiona, mas também há maus tratos, tráfico de droga, violações, pedofilia e não pensamos em legalizá-los por existirem. Este argumento, tantas e tantas vezes utilizado, não faz sentido. Os governos não podem legislar indo atrás de tudo o que ocorre numa sociedade. Algo por existir não nos pode levar forçosamente a aceitá-lo.

- Um aborto é tirar uma vida, ainda em estado de gestação, mas uma vida. Não podemos, como sociedade, descartar vidas em nome de comodidades ou conveniências. Não aceito o aborto como método contraceptivo.

- O sexo não tem, obviamente, que existir apenas com o fito da reprodução. Mas deve ser responsável, ou em caso contrário a responsabilidade deve ser assumida pelos intervenientes. O "combate" deve ser feito antes da fecundação do óvulo, esta – em alguns casos - nem sequer se deve dar, aí é que o Estado pode, e deve, intervir na formação e educação das pessoas. Prevenir sempre foi melhor do que remediar.

- O aborto é uma questão moral. Mas também é uma questão social. O aborto implica uma postura do Estado.

- Não me parece que descriminalizar melhore a situação. Quem vai ter dinheiro para pagar a multa são os mesmos que tem dinheiro para ir a Espanha. Falsa questão.

- Dizer que a legalização do aborto vai melhorar as condições das mulheres que os fazem não me parece real. O estigma ligado ao aborto impedirá, de um modo geral, as mulheres de recorrerem aos hospitais públicos, particularmente em meios pequenos. Os abortos de vão de escadas não vão acabar, acreditar que sim é de enorme ingenuidade.

Apesar de todas estas observações não consigo ter uma ideia absoluta sobre o assunto. Obviamente que não consigo, nem conseguirei, apontar o dedo a qualquer mulher que faça um aborto. Ainda assim acho que o Estado não deve permitir algo que se deve evitar e combater. O que está em causa é mais do que uma luta entre esquerda e direita, é uma questão social e civilizacional. Podemos acreditar numa determinada sociedade ou noutra, eu acredito numa sociedade em que o aborto não é legal mas que é, dentro do possível, eficazmente combatido.

1.3.04

Frio

Por entre o frio que nos congela espero uma réstia de fogo. Sempre gostei de neve, normalmente até gosto do frio, mas dias há em que me parece absurdo que o tempo gele sem que uns farrapos brancos caiam calmamente do céu. Acendo a lareira, que não tenho, e estendo-me com um bom livro ouvindo o ranger dos troncos que se consomem. Lá fora o bulício do fim do dia agita gentes frenéticas e geladas. Eu fico, sem lareira, sem um bom livro, apenas o monitor e a necessidade de trabalhar. Porque é que as coisas não podem ser mais simples.

A Oeste nada de novo

Parece que padeço do mesmo mal que alguns bloggers, tento ver todos os anos os Óscares e fatalmente adormeço no meio dos documentários de curta-metragem ou guarda-roupa. Ontem mantive a tradição, apenas consegui, e já achei muito, chegar até ao Argumento Adaptado.
Não fosse o Billy Cristal e amaldiçoaria as horas de sono perdido. Nenhuma surpresa, nenhum realizador de extrema-esquerda a "envergonhar" Bush, choros pouco sentidos, nenhum estrangeiro a saltar as cadeiras…
A Nova Zelândia foi realmente recorrente e aborrecida. O Senhor dos Anéis é esmagador, uma poderosa adaptação da obra que deliciou a minha adolescência. Só tenho pena que não tenha ganho antes, é que o terceiro é o menos bom de todos, o mais xaroposo.
Nos actores "Mystic River" teve o prémio merecido, as fabulosas interpretações de Sean Penn e Tim Robbins foram justamente vencedoras. (caso ganhasse Bill Murray também não se poderia falar de injustiça)
Enfim, menos interessante do que é normal, sem uma surpresa para animar a noite, menos injusto que noutros anos, o glamour de sempre.