14.1.05

Odisseias

Continuo a insistir em manter uma má relação com os serviços públicos. Manias minhas, certamente em nada devidas ao seu mau funcionamento. Insisto assim em que prepare cada necessária deslocação ás Finanças ou Segurança Social com tal antecedência que, invariavelmente, acabo a pagar as mais absurdas multas (aliás coimas) ou juros de mora. São expressões muito aqui de casa estas duas, e o trauma vai a tal ponto que até quando não me tenho de deslocar aos locais, mas simplesmente preencher um papel e enviar por correio, a passagem de prazo é uma constante. Vem ao caso que há umas semanas enviei – fora de prazo, como é evidente – uma declaração de IVA. Ora, ao tentar o seu pagamento via Multibanco o mesmo foi recusado pois a declaração fora enviada fora de prazo. Pânico, tinha então de me deslocar à própria repartição de Finanças. A proximidade do Natal obrigou-me a não estragar a felicidade da época com uma viagem tão traumática, foi assim já este ano que, resoluto, rumei a meio da manhã – pequeno-almoço forte, café forte – com a decisão de resolver o problema, nem que para tal fosse necessário insultar, bater ou espezinhar alguém. (A decisão empenhada deve-se em parte a já ter recebido em casa - aquando de um outro atraso semelhante - um carta em tom de tal forma ameaçador – falando em execuções fiscais e processos – que julguei ter por destino as grades ou a penhora do meu humilde Polo.)
Antes da deslocação consegui – após quase hora e meia de tentativas, e vários números errados – falar com o serviço informativo que me disse ter simplesmente de preencher o Modelo 2, pagando em seguida o valor. Entrei assim directo no R/C, onde se situa a tesouraria, que estranhamente estava vazia. Expliquei a minha situação à senhora e ela, ao ver que não era a minha repartição e estava fora de prazo, logo me disse simpaticamente: “Tem de ir ao primeiro andar”. Pronto, lá teria de ser. Subi as escadas e comecei a entrar na neura típica – uma fila que se previa para meia hora. Esperei, estoicamente e sem fumar, e chegando a minha vez expus, outra vez, a minha situação. Resposta pronta: “Se o senhor não é esta repartição não está aqui a fazer nada”. Explosão sustida, respirar fundo: “Tem a certeza?”. Ao ver que não me ia embora com facilidade: “Vou ali perguntar a uma colega”. E foi, e também deve ter perguntado como estava a família e se tinha dormido bem. Ao chegar: “Tem de ir ao andar de cima ás execuções fiscais, aí consegue resolver o assunto”. Respirar fundo, e aí vou para mais um lance de escadas e… uma outra fila de mais de meia hora. Aqui penso: fumo ou não fumo. Opto pela segunda, afinal ainda era de manhã. Quando chego ao balcão um funcionário novo e simpático – sem ironias – ouve a minha explicação – sempre podia ter gravado uma cassete –, vai ao telefone falar com a minha repartição, e chega com a sentença final: “Só tem de ir à tesouraria pagar, depois a sua repartição vai ter acesso ao pagamento e envia-lhe a coima.” Agradeci, apesar de que enquanto descia as escadas não ter a certeza de o dever ter feito. Afinal sempre paguei, rapidamente, só com uma pessoa à minha frente. Algo que poderia ter feito quase duas horas atrás, sem ter que conhecer todos os departamentos da repartição, sem perder quase uma manhã inteira no Portugal real. Bom seria que a esquerda percebesse que isto é terceiro mundo, muito mais do que as viagens do Ministro Sarmento a São Tomé. Podemos fazer o que quisermos, mas enquanto o serviço público não funcionar neste país, tudo o resto não vai melhorar o suficiente. Afinal era só mudar um funcionário para fazer triagem à entrada, agora o que diriam os sindicatos de mudar um Técnico de Atendimento Personalizado e Específico para o cargo de Técnico Atendimento e Triagem. Um ultraje, um cercear dos direitos dos trabalhadores, um abuso da entidade patronal, um desrespeito pelas atribuições técnicas do lugar.