20.1.05

A Praça

A magnífica Plaza Mayor, cruzamento de todos os caminhos pelas ruas e ruelas de Salamanca, o coração real de uma cidade que parece não dormir, o local sobre o qual se diz nunca estar vazio, seja a que horas e a que dia for.
Aqui tudo se pode passar e tudo se passa. O amanhecer com a chegada dos jornais aos quiosques e a preparação dos cafés e esplanadas para o pequeno-almoço. Os primeiros transeuntes que passam apressados em direcção ao trabalho ou ao pão. Um pouco mais tarde os estudante que fazem o caminho típico, cruzando a Praça na diagonal. A esta hora o bulício já é intenso, espectáculo para a plateia de esplanadas que, seja em que época for, sempre tem turistas ou locais como espectadores. A manhã passa e as pessoas também, uma certa acalmia vai tranquilizando as arcadas, quebrada inapelavelmente aquando da saída para almoço antecedida por uma tapa. O Cervantes atrai como íman gente para o seu primeiro andar com vista sobre a Praça, do Real sai, sempre que alguém abre a porta, um cheiro apetitoso que nos desafia a um “pincho-moruno”, a Praça torna-se frenética e no centro grupos de jovens sentam-se nos bancos ou no chão, desafiando o tempo em conversas intermináveis sempre observados pelas pedras brilhantes e camaleónicas que os rodeiam. A pouco e pouco todos vão almoçar e - durante a larga hora de pausa que inclui sesta - a Praça é quase abandonada aos turistas, que se espantam com o facto de a cidade inteira fechar para sesta, lojas incluídas. São eles que tomam conta do terreno, com as suas máquinas, as suas exclamações extasiadas, a sua rendição incondicional a uma beleza tão harmoniosa como esmagadora, tão serena como excitante. De repente, quase como se algum despertador tocasse, almas apressadas entram por todos os arcos e cruzam determinadas a Praça. A tarde de trabalho vai começar, ou as aulas como se vê por jovens de mochilas ou capas na mão. A partir daqui é um gradual crescendo em que senhoras de casaco de peles passam em direcção ás lojas ou ao café de meio da tarde e os estudantes vão a pouco e pouco reaparecendo. Tudo se encaminha para que por volta das oito horas a Praça seja um enorme concerto de almas andantes, quase todas em busca de um vinho e da tapa de fim de tarde, outros optando por um chá ou uma infusão mesmo ali ao lado no “La Regenta”. Os bares enchem-se e o barulho torna-se ensurdecedor. Cá fora, por entre os bancos, passa gente sem fim no carrossel do anoitecer da cidade. Após as tapas começa o regresso a casa generalizado, contrastado pelos que insistem em que o tempo não passe, alongando bebidas e conversas. Depois do jantar o ponto mais importante da Praça é o relógio, essa sentinela que durante o dia apenas guia o tempo, passa a ser o ponto de encontro de todos. Em Salamanca não se combina um sítio, combina-se uma hora, porque já se sabe que é por baixo do relógio. Tanto assim é que por vezes é difícil encontrar quem buscamos no meio de tanta gente. Daqui sai toda a gente para a noite, essa parte enorme da vida desta cidade. Aqui se cruzam pares de namorados, bêbados eufóricos cantando, aqui se sentam os desamparados. Aqui se dão românticos beijos e quentes abraços. Por aqui se regressa a casa, divertido, acompanhado, triste e deprimido, sóbrio ou cambaleante. Cedo ou tarde, cruzando já os olhares com quem limpa o chão ou traz os jornais com as notícias de um novo dia.
A Praça é mais que tudo uma vida, uma vida que são várias vidas, vários momentos. Alegrias, tristezas e euforias. Para além disso é bela, belíssima, e a sua pedra acompanha os movimentos das gentes mudando de cor conforme está sol ou uma neblina gelada de Inverno. Aqui a arte é o espaço, uma obra-prima que cruza a escultura com o urbanismo real e vivido, aqui a arte é vivida, é vida.


Inauguração de Salamanca 2002-Capital Europeia da Cultura
Els Comediants
Plaza Mayor, Salamanca, 2002

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