2.3.07

As palavras de…

Ferreira Fernandes in “Sábado”, 1 de Março de 2007.

“Estava a África do Sul a viver a sua viragem histórica, eleições com brancos e negros, quando me encontrei com um jovem admirável. Ele era branco, bei­rão e vivia em Durban, num bairro operário e negro. Aquela zona era zulu, uma minoria negra com um partido que se opunha ao ANC de Nelson Mande­la. No bairro, todas as manhãs apareciam cor­pos de xhosas e zulus, mortos a tiro e por vezes torturados. O meu jovem, que era mis­sionário, ensinava a ler nos dormitórios das fábricas e treinava uma equipa de futebol com os miúdos do bairro.
Eu tenho o que julgo ser uma reacção alérgica benigna. O que leva outros a terem erupções cutâneas por comerem camarão, a mim, perante um tipo admirável, põem­-se-me a brilhar os olhos. O rapaz viu. E en­tendeu que aquela homenagem se devia ao facto de eu o tresler. Onde eu via fraternida­de, o que o motivava era outra coisa: "Olhe que eu estou aqui por razões de fé."
Sorri e continuei com o brilhozinho nos olhos. Os caminhos do amor aos homens são insondáveis. A generosidade escreve di­reito por linhas tortas. O que quiserem. O jo­vem beirão tinha abandonado a sua terra e os seus, corria riscos e praticava o bem. O motor da sua humanidade, segundo ele, ali­mentava-se com uma gasolina que eu des­conhecia, a fé. Nas tintas. Para mim, o que era importante é que ele era dos meus. Des­culpem-me, desculpem-me, a presunção da frase anterior. O que eu quero dizer é que gostaria de ser dos dele.
Vai para aí uma polémica sobre um túmulo de Jesus que poria em causa alguns dog­mas do cristianismo. Ele não ressuscitou e teve um filho? Eis, mais uma vez, o que me deixa indiferente. O meu brilhozinho nos olhos por essa pessoa generosa e fraterna que foi Jesus Cristo – virado para todos os homens e não só para os eleitos, respeita­dor dos mais fracos, igualizador dos géne­ros, político moderníssimo ("Dar a César...") – continua cintilante. Seja, ele não foi Deus. Não me importa, tenho uma versão para ele ainda maior.”

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