26.4.07

Uma vez toureiro, sempre toureiro.

A corrida decorria bocejante, perante a falta de força e bravura dos touros, quando chegou o sobrero da ganadaria de Torrestrella, que substituiu o quarto devolvido por invalidez. Sai à praça César Rincón, toureiro colombiano no final de uma brilhante carreira, em tempos em que o fulgor lhe parecia fugir e em que a banalidade tomava conta das suas faenas. O touro prometia algo, pelo menos algo mais do que os anteriores, e Rincón avançou decidido com a muleta para o lidar. Esta era a sua última corrida em Sevilha, praça de gratas memórias e uma das catedrais do toureio. Iniciou a faena com cites largos, dando toda a vantagem ao touro, toureando com tanta seriedade que os pitons corriam em tangentes ao seu peito. O toureio de Rincón sempre foi de coragem e verdade, sem artifícios de suposta valentia, puro. As primeiras séries com a direita foram canónicas, belas e poderosas. Cheirava a triunfo e a praça gritava olés a acompanhar cada passe sobre um respeitoso silêncio ensurdecedor. Começou uma série com a esquerda, com o toureio dito ao natural, onde o touro ainda mais vantagem ganha perante a exiguidade do pano com que é lidado. Uma vez mais a verdade, que foi tanta que o touro o apanhou e o lançou ao ar qual boneco de trapos, caído desamparado de má maneira e temendo-se o pior. A praça silenciou, num momento sepulcral em que se ouviria um alfinete a cair, e revolveu-se de imediato, em pânico pelo acontecido. De pronto o toureiro foi socorrido pelos bandarilheiros e pelos colegas, pondo-se de pé. Mas cambaleava, e coxeava, e estava aparentemente pronto para seguir para a enfermaria. O público ovacionava a coragem, quando começou a protestar ao ver Rincón tentar avançar para o touro enquanto os colegas o procuravam refrear. Nada explica esta valentia quiçá insana, nada explica o sangue que corre nestas gentes que jogam a vida perante bestas cheias de bravura. Rincón lá se libertou e seguiu para o touro, ainda coxeando, ainda cambaleando, talvez um pouco mais desperto pela água que lhe passaram na cara. A praça estava em convulsão, entre o respeito pela coragem e o medo da inconsciência. O toureiro seguiu tranquilo, com se nada se houvera passado, com passos elegantes em direcção ao touro. Parou, citou, e continuou a tourear como antes, como se a faena aí começasse, arrimado, puro, com o touro a passar de novo à mesma distância do seu peito, com a seriedade respeitosa de quem admira o oponente mas se sabe capaz de se opor a ele. Pela direita e pela esquerda, com uns preciosos ayudados para terminar a faena. O público delirava e vergava-se perante um enorme toureiro, à antiga, um artista de valentia, um dos que melhor junta alguns dos mais essenciais adjectivos de um toureiro: corajoso, sério, artista. Chegava a hora da morte, momento de grande perigo para o toureiro – que tem de se expor para tentar colocar a espada no sítio correcto – e onde se joga o triunfo de uma lide. Rincón perfilou-se e, em vez de entrar a matar, citou o touro para o estocar a receber. A sorte é assim ainda mais difícil e arriscada, e a espada não entrou, batendo em algum osso que se interpôs no caminho. O público aplaudiu a tentativa, em especial por hoje ser raro quem escolhe esta sorte para terminar a faena. O toureiro perfilou-se de novo e, na mesma sorte, chamou o touro e deu-lhe uma estocada inteira e letal, magnífica. O touro morreu de pronto e a praça levantou-se em vibrantes aplausos. Sevilha é praça exigente, mas quando se vê perante o grande toureio recompensa como poucas a sua arte. No dia vinte e quatro a Real Maestranza de Sevilha veio abaixo, pois viu-se perante um toureiro grande, daqueles que escasseiam, daqueles que nos fazem tremer, daqueles que fazem da tourada um momento sublime.

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