Ferreira Fernandes in “Sábado”, 22 de Fevereiro de 2007
“Todos os dias se mata, todos os dias nos vamos habituando. Mas, um dia, há um morto especial que nos lembra o absurdo da violência. O Brasil (o Brasil!, esse especialista do assunto) vive, desde a semana passada, um momento desses. Começou banalmente num semáforo do Rio de Janeiro, onde parou um Corsa. Dentro do carro, a condutora, urna amiga, a filha da condutora, de 13 anos, e o filho, João Hélio, de 6. As notícias que marcam acumulam aqueles pormenores que, depois, nos alimentam a conversa. Aqueles acasos que, depois, nos servem para confirmar corno o destino tem um jeito que é só seu para dar para o torto. O garoto, sentado no banco de trás, usava o cinto de segurança, bom hábito tão raro no Brasil.
Continua-se no trivial: parada no cruzamento, a condutora vê urna arma apontada e ouve a ordem para abandonar o carro. Saem todos. Quer dizer, nem todos. A condutora contorna o carro para libertar o filho do cinto de segurança. Outro pormenor para alimentar conversa: nessa tarde, João Hélio tinha marcado o seu primeiro golo na escola. A mãe abre a porta, puxa o garoto mas o cinto de segurança atrapalha. Nessa altura, os bandidos - são três e muito jovens - já estão dentro do carro. Este arranca, João Hélio escapa dos braços da mãe, a porta fecha (a lei da inércia funcionou, a única que não falha no Brasil) e o miúdo fica do lado de fora, preso. Durante sete quilómetros vai espalhando partes de si pelas ruas.
Os bandidos sabiam que levavam um corpo arrastado. Fazem ziguezagues corno quem se quer livrar de um estorvo. Mais do que a visão da cabeça do menino batendo no asfalto e na roda traseira, urna testemunha disse que nunca mais se esquecerá do desespero da irmã, gritando atrás do carro. Mais à frente, um motociclista alinha-se com o carro e faz sinal que arrasta um corpo. Os bandidos fazem-no desistir, apontando-lhe urna pistola. Sete quilómetros da cidade, bairros inteiros, botequins de esquina, um quartel de bombeiros, vêem o desfile macabro. Primeiro, julgando ser piada de mau gosto com boneco, depois, assustando-se com a lataria ensanguentada do carro. Enfim, o Corsa é abandonado numa rua tranquila. Outro pormenor, para dar pinceladas à conversa: o primeiro polícia que chega ao local é um sargento, não é novato, mas, depois de olhar a massa informe em que se transformou o João Hélio, desata num choro, não consegue pedir socorro.
Os três bandidos: um tem 23 anos e já seis entradas e saídas da prisão, outro, 18 anos, e o outro, 16, ambos sem cadastro. Depois de abandonar o carro, foram jantar a casa e foram a urna festinha da igreja do bairro. No dia seguinte, o de 16 e o de 18 anos são presos. Depois, é preso o de 23, irmão do menor e chefe do gangue, que costumava fazer estes assaltos.
Esse o caso que fez o Brasil assombrar-se. Emoção sentida, violinos baratos (os cortejos de Carnaval fizeram minutinhos de silêncio e versinhos) e, inevitavelmente, a discussão jurídica. Se, em vez daquele entra-e-sai da cadeia do chefe do gangue, ele estivesse numa a sério e pelo tempo razoável que a sua insistência no crime pedia, não se teria poupado o João Hélio? Pergunta demagógica, de acordo. Então, factos: o menor, aquele que apontou a pistola à condutora, ficará detido, no máximo, por três anos. O de 18 anos, mesmo que condenado ao máximo da pena, 30 anos, deverá ser solto ao fim de um sexto do cumprimento dela. Corno diz à revista Época, irónica: "Daqui a cinco anos, talvez esteja nas mesmas festinhas da igreja."
O Brasil tem das mais brandas legislações penais para menores. Em Inglaterra, para falar do país que inventou o habeas corpus, um menor pode ser condenado à prisão perpétua. Acontece que o Brasil está refém do seu arrependimento: em 1993, polícias mataram oito miúdos de rua, frente à igreja da Candelária, no Rio. Corno é que um país assim pode endurecer as suas leis para menores, sem ter as organizações internacionais à perna?
A verdade é que o Brasil tem muitos filmes sobre pivetes, garotos de favela, adolescentes da Cidade de Deus, filhos dos "capitães da areia" de Jorge Amado. A consciência pesada vende. Mas João Hélio, aposto, não vai dar filme.
Exagero? Então, oiçam. Na sexta-feira, o Presidente Lula foi inaugurar a maior central telefónica do mundo, em São Paulo. Seis mil empregos, quase tudo gente jovem. Lula falou para eles sobre o caso que abala o Brasil. Sobre João Hélio? Não. Sobre a necessidade de não ser demasiado emotivo com o condutor assassino: "Se a gente estivesse naquele lugar, o que a gente faria? Certamente nós faríamos quase a mesma barbaridade que ele fez com aquela criança." Não tendo havido linchamento, estranha-se a prioridade das preocupações. Espalha-se massa encefálica de urna criança pelas ruas e ganha-se o Presidente corno advogado.”
“Todos os dias se mata, todos os dias nos vamos habituando. Mas, um dia, há um morto especial que nos lembra o absurdo da violência. O Brasil (o Brasil!, esse especialista do assunto) vive, desde a semana passada, um momento desses. Começou banalmente num semáforo do Rio de Janeiro, onde parou um Corsa. Dentro do carro, a condutora, urna amiga, a filha da condutora, de 13 anos, e o filho, João Hélio, de 6. As notícias que marcam acumulam aqueles pormenores que, depois, nos alimentam a conversa. Aqueles acasos que, depois, nos servem para confirmar corno o destino tem um jeito que é só seu para dar para o torto. O garoto, sentado no banco de trás, usava o cinto de segurança, bom hábito tão raro no Brasil.
Continua-se no trivial: parada no cruzamento, a condutora vê urna arma apontada e ouve a ordem para abandonar o carro. Saem todos. Quer dizer, nem todos. A condutora contorna o carro para libertar o filho do cinto de segurança. Outro pormenor para alimentar conversa: nessa tarde, João Hélio tinha marcado o seu primeiro golo na escola. A mãe abre a porta, puxa o garoto mas o cinto de segurança atrapalha. Nessa altura, os bandidos - são três e muito jovens - já estão dentro do carro. Este arranca, João Hélio escapa dos braços da mãe, a porta fecha (a lei da inércia funcionou, a única que não falha no Brasil) e o miúdo fica do lado de fora, preso. Durante sete quilómetros vai espalhando partes de si pelas ruas.
Os bandidos sabiam que levavam um corpo arrastado. Fazem ziguezagues corno quem se quer livrar de um estorvo. Mais do que a visão da cabeça do menino batendo no asfalto e na roda traseira, urna testemunha disse que nunca mais se esquecerá do desespero da irmã, gritando atrás do carro. Mais à frente, um motociclista alinha-se com o carro e faz sinal que arrasta um corpo. Os bandidos fazem-no desistir, apontando-lhe urna pistola. Sete quilómetros da cidade, bairros inteiros, botequins de esquina, um quartel de bombeiros, vêem o desfile macabro. Primeiro, julgando ser piada de mau gosto com boneco, depois, assustando-se com a lataria ensanguentada do carro. Enfim, o Corsa é abandonado numa rua tranquila. Outro pormenor, para dar pinceladas à conversa: o primeiro polícia que chega ao local é um sargento, não é novato, mas, depois de olhar a massa informe em que se transformou o João Hélio, desata num choro, não consegue pedir socorro.
Os três bandidos: um tem 23 anos e já seis entradas e saídas da prisão, outro, 18 anos, e o outro, 16, ambos sem cadastro. Depois de abandonar o carro, foram jantar a casa e foram a urna festinha da igreja do bairro. No dia seguinte, o de 16 e o de 18 anos são presos. Depois, é preso o de 23, irmão do menor e chefe do gangue, que costumava fazer estes assaltos.
Esse o caso que fez o Brasil assombrar-se. Emoção sentida, violinos baratos (os cortejos de Carnaval fizeram minutinhos de silêncio e versinhos) e, inevitavelmente, a discussão jurídica. Se, em vez daquele entra-e-sai da cadeia do chefe do gangue, ele estivesse numa a sério e pelo tempo razoável que a sua insistência no crime pedia, não se teria poupado o João Hélio? Pergunta demagógica, de acordo. Então, factos: o menor, aquele que apontou a pistola à condutora, ficará detido, no máximo, por três anos. O de 18 anos, mesmo que condenado ao máximo da pena, 30 anos, deverá ser solto ao fim de um sexto do cumprimento dela. Corno diz à revista Época, irónica: "Daqui a cinco anos, talvez esteja nas mesmas festinhas da igreja."
O Brasil tem das mais brandas legislações penais para menores. Em Inglaterra, para falar do país que inventou o habeas corpus, um menor pode ser condenado à prisão perpétua. Acontece que o Brasil está refém do seu arrependimento: em 1993, polícias mataram oito miúdos de rua, frente à igreja da Candelária, no Rio. Corno é que um país assim pode endurecer as suas leis para menores, sem ter as organizações internacionais à perna?
A verdade é que o Brasil tem muitos filmes sobre pivetes, garotos de favela, adolescentes da Cidade de Deus, filhos dos "capitães da areia" de Jorge Amado. A consciência pesada vende. Mas João Hélio, aposto, não vai dar filme.
Exagero? Então, oiçam. Na sexta-feira, o Presidente Lula foi inaugurar a maior central telefónica do mundo, em São Paulo. Seis mil empregos, quase tudo gente jovem. Lula falou para eles sobre o caso que abala o Brasil. Sobre João Hélio? Não. Sobre a necessidade de não ser demasiado emotivo com o condutor assassino: "Se a gente estivesse naquele lugar, o que a gente faria? Certamente nós faríamos quase a mesma barbaridade que ele fez com aquela criança." Não tendo havido linchamento, estranha-se a prioridade das preocupações. Espalha-se massa encefálica de urna criança pelas ruas e ganha-se o Presidente corno advogado.”
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