23.2.07

Desculpas voltam a atacar

Ferreira Fernandes in “Sábado”, 22 de Fevereiro de 2007

“Todos os dias se mata, todos os dias nos vamos habituando. Mas, um dia, há um morto es­pecial que nos lembra o absurdo da violência. O Brasil (o Bra­sil!, esse especialista do assun­to) vive, desde a semana passada, um momento desses. Começou banalmente num semáforo do Rio de Janeiro, onde pa­rou um Corsa. Dentro do carro, a conduto­ra, urna amiga, a filha da condutora, de 13 anos, e o filho, João Hélio, de 6. As notícias que marcam acumulam aqueles pormeno­res que, depois, nos alimentam a conversa. Aqueles acasos que, depois, nos servem para confirmar corno o destino tem um jeito que é só seu para dar para o torto. O garoto, sen­tado no banco de trás, usava o cinto de se­gurança, bom hábito tão raro no Brasil.
Continua-se no trivial: parada no cruza­mento, a condutora vê urna arma apontada e ouve a ordem para abandonar o carro. Saem todos. Quer dizer, nem todos. A con­dutora contorna o carro para libertar o fi­lho do cinto de segurança. Outro pormenor para alimentar conversa: nessa tarde, João Hélio tinha marcado o seu primeiro golo na escola. A mãe abre a porta, puxa o garoto mas o cinto de segurança atrapalha. Nessa altura, os bandidos - são três e muito jo­vens - já estão dentro do carro. Este arran­ca, João Hélio escapa dos braços da mãe, a porta fecha (a lei da inércia funcionou, a úni­ca que não falha no Brasil) e o miúdo fica do lado de fora, preso. Durante sete quilóme­tros vai espalhando partes de si pelas ruas.
Os bandidos sabiam que levavam um cor­po arrastado. Fazem ziguezagues corno quem se quer livrar de um estorvo. Mais do que a visão da cabeça do menino batendo no asfalto e na roda traseira, urna testemunha disse que nunca mais se esquecerá do deses­pero da irmã, gritando atrás do carro. Mais à frente, um motociclista alinha-se com o carro e faz sinal que arrasta um corpo. Os bandidos fazem-no desistir, apontando­-lhe urna pistola. Sete quilómetros da cida­de, bairros inteiros, botequins de esquina, um quartel de bombeiros, vêem o desfile macabro. Primeiro, julgando ser piada de mau gosto com boneco, depois, assustan­do-se com a lataria ensanguentada do car­ro. Enfim, o Corsa é abandonado numa rua tranquila. Outro pormenor, para dar pince­ladas à conversa: o primeiro polícia que che­ga ao local é um sargento, não é novato, mas, depois de olhar a massa informe em que se transformou o João Hélio, desata num choro, não consegue pedir socorro.
Os três bandidos: um tem 23 anos e já seis entradas e saídas da prisão, outro, 18 anos, e o outro, 16, ambos sem cadastro. Depois de abandonar o carro, foram jantar a casa e foram a urna festinha da igreja do bairro. No dia seguinte, o de 16 e o de 18 anos são presos. Depois, é preso o de 23, ir­mão do menor e chefe do gangue, que cos­tumava fazer estes assaltos.
Esse o caso que fez o Brasil assombrar-se. Emoção sentida, violinos baratos (os corte­jos de Carnaval fizeram minutinhos de si­lêncio e versinhos) e, inevitavelmente, a dis­cussão jurídica. Se, em vez daquele entra­-e-sai da cadeia do chefe do gangue, ele es­tivesse numa a sério e pelo tempo razoável que a sua insistência no crime pedia, não se teria poupado o João Hélio? Pergunta de­magógica, de acordo. Então, factos: o menor, aquele que apontou a pistola à condutora, ficará detido, no máximo, por três anos. O de 18 anos, mesmo que condenado ao má­ximo da pena, 30 anos, deverá ser solto ao fim de um sexto do cumprimento dela. Corno diz à revista Época, irónica: "Daqui a cinco anos, talvez esteja nas mesmas festi­nhas da igreja."
O Brasil tem das mais brandas legisla­ções penais para menores. Em Inglaterra, para falar do país que inventou o habeas cor­pus, um menor pode ser condenado à pri­são perpétua. Acontece que o Brasil está re­fém do seu arrependimento: em 1993, po­lícias mataram oito miúdos de rua, frente à igreja da Candelária, no Rio. Corno é que um país assim pode endurecer as suas leis para menores, sem ter as organizações in­ternacionais à perna?
A verdade é que o Brasil tem muitos fil­mes sobre pivetes, garotos de favela, adoles­centes da Cidade de Deus, filhos dos "capi­tães da areia" de Jorge Amado. A consciência pesada vende. Mas João Hélio, aposto, não vai dar filme.
Exagero? Então, oiçam. Na sexta-feira, o Presidente Lula foi inaugurar a maior cen­tral telefónica do mundo, em São Paulo. Seis mil empregos, quase tudo gente jovem. Lula falou para eles sobre o caso que abala o Bra­sil. Sobre João Hélio? Não. Sobre a necessi­dade de não ser demasiado emotivo com o condutor assassino: "Se a gente estivesse naquele lugar, o que a gente faria? Certa­mente nós faríamos quase a mesma barba­ridade que ele fez com aquela criança." Não tendo havido linchamento, estranha-se a prioridade das preocupações. Espalha-se massa encefálica de urna criança pelas ruas e ganha-se o Presidente corno advogado.”

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