A propósito da estreia comercial de “Into Great Silence” – “O Grande Silêncio”, de Philip Gröning, volto a publicar um post de Outubro de 2006, aquando a sua exibição no DocLisboa.
“A deslocação a um cinema para ver um documentário de cerca de três horas sobre a vida monástica dos cartuxos (a ordem de clausura com regras mais ascéticas) – filmado com som ambiente, luz natural e sem equipa técnica, que não o realizador, segundo regras estabelecidas pelo abade para, dezasseis anos após o pedido de Gröning, autorizar a entrada na Cartuxa – é experiência radical a que não aconselharia noventa por cento dos meus amigos. Tudo levava a imaginar um filme chatíssimo, e apenas uma conjugação de interesse artístico e religioso me levou aceitar a experiência. Sim, a experiência, porque é disso que o filme trata. A experiência de partilhar uma forma de vida exótica perante os padrões de vida de hoje em dia. Mais do que “entrar” no silêncio, entramos num mundo paralelo em que o tempo é conceito diferente, regrado e repetitivo, mas tranquilo.
A clausura sempre foi uma manifestação de fé que tinha grande dificuldade em compreender. O que levaria um ser humano livre a deixar-se reger por um regime de vida profundamente ascético e que tornava a sua existência um mero ritual repetitivo de oração? Porque motivo alguém escolhe, no mundo de hoje em que as liberdades são conhecidas por (quase) todos, uma vida em que o mundo é apenas uma existência física para lá de muros e paredes? O filme não procura esta resposta, como aliás não procura nenhuma resposta, seguindo o rigor jornalístico na forma com se “limita” a mostrar uma vivência, uma opção de vida, sem um julgamento moral ou social. Gröning não nos diz que esta reclusão, ou qualquer outra reclusão, é boa ou má, aceitável ou não, apenas nos mostra com crueza e rigor como é vivida essa reclusão. Claro que observar como é a vida de clausura nos permite ter o nosso próprio julgamento, não condicionado por ideias veiculadas no filme, mas sim pelo nosso julgamento perante a realidade que nos é mostrada. Ao ver como é a vida destes monges, consigo melhor perceber que assim consigam viver.
O silêncio é algo de que tendemos a esquecer o valor. Quantas vezes poderemos dizer que estamos, de facto, em silêncio? Hoje, a sociedade associa o silêncio à solidão, à tristeza, a uma fuga da realidade cada vez mais barulhenta e feérica, a uma fuga do mundo. Acredito que tudo isto se passe em cada monge que escolheu a vida da Cartuxa, apenas um factor não é semelhante, para eles o seu mundo não é o nosso mundo vulgar e comezinho, o seu mundo é o espiritual, e o “nosso” é apenas suporte físico intermédio numa relação permanente com o divino.
Será a clausura necessária para alguém poder dedicar a sua vida a Deus? Não creio, mas é uma forma como qualquer outra para alguém se encontrar consigo próprio e com Deus. Não será tão exótica esta opção de vida radical como será a dos hippies ou dos ciganos nómadas? Cada vez mais a sociedade nos manipula a acolher diferenças que se tornam politicamente correctas e que acabamos por ter de aceitar, porque não aceitar que alguém queira simplesmente ter o seu mundo sem incomodar ninguém?
Cinematograficamente o filme é interessantíssimo, pois mostra o enorme talento de Gröning para filmar em condições mais do que complicadas. Ele não podia utilizar as técnicas habituais, a sua câmara teria de ser crua e discreta, simples e sem artifícios. A beleza estética que resulta das imagens é impressionante, e há planos inesquecíveis, tais como as orações nocturnas acompanhadas por cantos gregorianos ou os primeiros planos frontais dos monges. Não obstante, o mais notável no filme é a forma como o mesmo é montado e com isso consegue criar uma lógica argumentativa. A montagem consegue tornar o filme surpreendentemente ritmado, criando um ciclo repetitivo de tempos, um ciclo nunca fechado, permanente. A sequência de imagens alterna imagens da vivência dos monges – rezando, comendo, cantando – com a natureza em redor – com a maravilhosa natureza em redor e as suas montanhas cobertas de neves ou ribeiros correndo na primavera. Gröning consegue, através de uma brilhante realização e de uma fabulosa montagem., criar uma quase-hipnose ao longo do filme da qual apenas somos despertados quando as luzes se acendem. No final do filme, a sensação é a de que de facto estivemos na “Grande Chartreuse” por tempo indefinido, há um tempo indefinido. Enquanto o filme dura esquecemos o mundo, o nosso mundo, e compartilhamos a experiência de espiritualidade vivida pela oração, por uma vida de constante oração."
13.2.07
Elogio do Silêncio
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