23.12.08

Horas de Natal – 23.45h

Gilles Peress, 2003, New York City – Magnum Photos

– Corre, Isabel, já estamos atrasados para a missa.
– Oh, Carlos, não posso voar! Infelizmente não me deste uma vassoura de presente.
– Muito engraçada, sim senhor, o vinho do Porto a fazer o seu efeito.
– Não digas disparates, este ano correu tudo tão bem, até parece que a tua família se habituou à minha loucura.
– Disparate, sempre gostaram de ti.
– Mais ou menos, mas também é difícil gostar do que não se conhece.
– Pronto, vá lá, entra no carro.
– Já estou, podes arrancar.
As ruas estavam desertas e as janelas iluminadas faziam a cidade parecer um vasto presépio. O carro seguia com calma e conversavam calorosamente até passar no Martim Moniz. Junto a um centro comercial um pequeno aglomerado de gente chamou-lhes a atenção. Silhuetas de tristeza dispunham-se em redor de uma carrinha branca que contrastava com as paredes sujas do edifício. O carro parou e Isabel olhou admirada para Carlos.
– Porque estás a parar?
– Está ali o meu primo Luís.
Isabel voltou a cara e viu o primo junto à carrinha a distribuir copos de uma qualquer bebida quente. Sem uma palavra, Carlos saiu do carro logo seguido por Isabel. O sobretudo, a gravata e o casaco de peles de Isabel eram imagem de um erro de casting que poderia ser ofensivo para os pobres mutantes. Isto, caso Luís não se tivesse dado conta da sua presença e se dirigisse a eles antes de qualquer reacção. Trazia um sorriso enorme e um brilho nos olhos que lhe eram estranhos.
– Olá meninos, o que fazem por aqui?
– Estávamos a caminho da missa quando olhei e te reconheci. – respondeu Carlos – Mas eu é que devia perguntar o que fazes aqui. Julguei-te em casa dos teus pais, aliás, conto passar por lá a seguir à missa.
– Julguei que soubesses, este ano resolvi viver um Natal diferente. Faz tempo que queria fazer algo de útil nesta época tão especial e depois de conhecer este grupo de apoio aos sem-abrigo dei-me como voluntário para os acompanhar na noite de Natal. No início levei um soco no estômago com as histórias que fui ouvindo, mas depois percebi a importância para esta gente de, neste dia que é da família e dos amigos, terem alguém que se tenha lembrado deles e que esteja ali para uma palavra de conforto. Está a ser, sem dúvida, o melhor Natal da minha vida.
– Meninos, olhem as horas, vão para a missa e talvez nos encontremos depois lá em casa. Ainda não sei bem até que horas vou ficar.
Cumprimentaram-se com desejos de continuação de um “Bom Natal” e Carlos e Isabel dirigiram-se para o carro.
Até chegarem à igreja não trocaram uma palavra ou um olhar.

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