4.12.03

Camarate

Lembro-me como se fosse hoje, numa recordação de infância perene. Estávamos em redor da braseira, como habitualmente nas frias noites de província. A emissão foi interrompida, um jornalista com ar grave anunciava que se tinha despenhado em Camarate o avião que transportava o Primeiro-Ministro Sá Carneiro, o Ministro Adelino Amaro da Costa e Patrício Gouveia. Na sala um silêncio sepulcral, os meus pais e as minhas irmãs entreolharam-se. A incredulidade deu lugar a algumas lágrimas de revolta. Ninguém queria acreditar que estes homens, em especial Sá Carneiro, tivessem morrido. Sentimos a sua morte como a de um parente de quem gostamos.
A esperança de um Portugal democrático e pacificado estava a solidificar-se com a crença neste homem. Meses antes, lembrava-me da praça da minha cidade completamente cheia para um comício da AD, acompanhado por uma audiência quase histérica. Como mais novo, acompanhava os meus irmãos nestes momentos, enchiam-me de autocolantes e eu empunhava feliz bandeiras ao som de palavras de ordem. Até hoje sobreviveram as bandeiras, o single com o hino, até alguns autocolantes. Foram tempos de esperança, de política vivida com convicção, sem votar em males menores, com intervenção real das pessoas.
Era então uma criança, mas a importância desses tempos, dessas pessoas, demostra-se ao lembrar-me ainda hoje, como se de ontem se tratasse, do dia em que caiu em Camarate esse avião, e com ele a esperança de muitos portugueses.

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